quinta-feira, 24 de abril de 2014

A PARTE CHEIA DO COPO

Antropóloga, Hilaine Yaccoub relata a experiência de viver na Barreira do Vasco, base de sua tese de doutorado
COLUNISTA CONVIDADO(A): HILAINE YACCOUB
FOTO: ARQUIVO PESSOAL
FOTO: ARQUIVO PESSOAL
Muitos me perguntam o que faz um antropólogo, e de forma simplista costumo responder que somos tradutores culturais. Explico. A antropologia nasceu com a curiosidade de físicos, botânicos, historiadores etc em conhecer os povos chamados ‘primitivos’ na época das navegações. Aquela ‘gente exótica’, que se vestia diferente, falava outra língua, tinha umas expressões curiosas… até que em dado momento, em vez de achar tudo engraçado ou amedrontador, alguns começaram a querer entender o que motivava aquelas pessoas, quais as suas lógicas de ação, crenças, valores. Aí surge a antropologia, ciência que procura entender e interpretar outros universos sem fazer julgamentos para depois traduzir estas relações.
Procurar povos distantes foi o primeiro passo desse fazer antropológico. No entanto, anos mais tarde, já no início do século XXI, pesquisadores levaram essa forma de ver pessoas e culturas para dentro das cidades. Não é difícil perceber que dentro do nosso bairro, estado ou cidade há grupos que se diferenciam entre si, se vestem diferente, se divertem de formas plurais e vivem a vida de maneiras distintas. Assim, estamos perto e longe ao mesmo de tempo, convivemos com eles e muitas vezes não conseguimos enxergar a riqueza cultural ali traduzida.
Assim ocorreu comigo quando iniciei meu trabalho de investigação na Barreira do Vasco. Alguns amigos se assustaram, porém com o passar do tempo, foram vendo que existe sim uma forma nebulosa de ver essas pessoas. Posso dizer que desde janeiro de 2011, quando fui para lá, nunca encontrei tanta solidariedade, senso de agregação e valor humano nas favelas que conheci. Com a entrada das UPPs e o avanço das empresas, empresários se interessaram pelo filão, promovendo e propondo negócios sedutores, como se moradores de favelas fossem novos índios, ingênuos, vítimas que seriam resgatados e civilizados para o consumo. Bobagem. As pessoas sabem muito bem o que querem e possuem uma racionalidade própria de avaliar custo e benefício — o grande desafio para esse mercado. Para falar para os de dentro é preciso estar lá.
Antropólogos têm sido chamados para os mais variados trabalhos no campo do entendimento do comportamento do consumidor. O que acabei aprendendo é que muita gente descreve, mas pouco se explica. Como estudo acesso e consumo de serviços públicos, só estando lá dentro entendo o drama que é ficar sem luz a noite inteira, sendo mordida por mosquitos, sem água (a bomba não funciona), entretenimento (TV) e sofrendo comum calor absurdo. Da mesma maneira, só estando lá pude partilhar a alegria do retorno da luz ao gritar de felicidade junto aos meus vizinhos, como se fosse gol do Brasil. Ninguém me tira o que vivi. O que pretendo com a pesquisa é demonstrar quão rico pode ser o olhar para um determinado grupo ou lugar se fizermos de um jeito diferente. Em vez de olhar a parte vazia do copo, faço um convite: olhe para a parte cheia.
FONTE: http://blogs.odia.ig.com.br/guia-das-comunidades/2014/03/10/a-parte-cheia-do-copo/